Percursos limiares com Clarice Lispector

Antes de iniciar minha apresentação, quero agradecer aos professores João Camillo Penna, Sabrina Sedlmayer, Raúl Antelo e Wladimir Garcia por terem aceitado o convite para estar nesta banca e pela leitura do meu trabalho. Agradeço à minha orientadora, a professora Ana Luiza Andrade pelo caminho que trilhamos desde o mestrado e o trabalho que realizamos até este momento. E gostaria de agradecer também a todas e todos que estão assistindo a esta defesa de tese de doutorado, do Programa de Pós-graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina. Ela está sendo realizada à distância em função da pandemia do Corona-vírus que já ceifou a vida de mais de um milhão de pessoas no mundo, entre estas mais de cento e quarenta e nove mil brasileiras e brasileiros.

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Desde que iniciei meu percurso acadêmico estou às voltas com as palavras e entre elas. Sejam as palavras literárias, aquelas grávidas de sentidos outros que proliferam narrativas, as quais os olhos e os ouvidos não se cansam de ler e escutar; sejam as palavras ouvidas do outro quando narra a própria vida, causos e percalços em uma sessão de análise, aquelas palavras encarnadas na alma capazes tanto de fazer adoecer quanto de curar. Sigo assim à escuta das palavras, das suas raízes, seus ecos, ressonâncias e efeitos em um caminho que, a cada passo que dou, meus pés tocam o chão de dois campos: o da pós-graduação em literatura e o do meu ofício de psicanalista em formação permanente.

Este itinerário limítrofe teve esteio para se desenvolver a partir de um ponto de encontro: o com Walter Benjamin no Núcleo de Estudos Benjaminianos, o NEBEN da UFSC, liderado por minha orientadora e do qual faço parte. Nele vários pesquisadores e pesquisadoras se valem dos conceitos e discussões deste pensador como um método de análise para outras áreas de conhecimento, produzindo assim leituras benjaminianas com o cinema, artes plásticas, arquitetura, literatura, psicanálise. Como resultado, minha pesquisa de doutorado só poderia ser um percurso limiar entre entre Clarice Lispector e Walter Benjamin, entre literatura e psicanálise nas passagens entre eles e as áreas, onde se encontram, se misturam e se contaminam.

Minha tese Svegliamaquia, Instantes de Despertar em Clarice Lispector dispõe a desmontagem e a remontagem de um relógio chamado Sveglia, seus sentidos e significados de despertar em clave benjaminiana oriundos da leitura das versões de “O relatório da coisa”, de Clarice Lispector. As versões foram inicialmente publicadas em jornal e revista e intituladas “Um anticonto” e “Objecto-relatório-mistério.” Essas narrativas são compostas por iluminações profanas emanadas pelo relógio através de um olhar dialético que percebe a inquietante estranheza das coisas cotidianas. Neles uma narradora fala sobre e dialoga com este objeto acerca do tempo, do acordar e da morte, além de ironizar a natureza de mercadoria e a existência quase humana dele, aquela “objetividade espectral” que Walter Benjamin observou nos objetos de consumo.

Sobretudo os relatos clariceanos destacam um relógio de outra espécie, diferente do engolir monstruoso de Cronos e de Saturno e do tempo capitalista do Time is Money. É pelo nome, marca que as coisas e as mercadorias contêm em si, que o relógio invoca outro tempo. Cito as narrativas: A marca é Sveglia, o que quer dizer “acorda.” Acorda para o que, meu deus? Para o tempo, para a hora, para o instante. Ou seja, há um chamado a despertar para os instantes que não cessão de afluir, de pulsar, mais afeito ao turbilhão temporal da origem benjaminiana.

O nome do relógio tem lugar primordial para a composição da tese, pois foi a partir do que a palavra Sveglia reverbera e prolifera que ela foi composta. Em italiano o vocábulo apresenta três acepções: um) a do objeto despertador, dois) a do chamado a acordar e três) a da ação reflexiva do acordar-se, o svegliarsi, verbo do qual Sveglia é proveniente. Os desdobramentos do termo abriram caminho para as características e especificidades dos instantes de despertar, as sensibilidades necessárias e os movimentos neles em jogo.

Essa desmontagem lúdica revela o quão imprescindível é estender os ouvidos às palavras, aos sons e aos sentidos que elas, sem o saber, trazem consigo. Pois aquilo que parece óbvio é muitas vezes o mais difícil de se ouvir, como alerta Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres, de Clarice. Por isso a importância de fazer uso de uma escuta das palavras, dos ecos, das vozes, dos chamados da literatura. Na minha tese essa auscultação foi fundamentada com base em três esteios: um) em À escuta, de Jean-Luc Nancy, a partir da disposição e da disponibilidade para deixar-se tocar por sons, ideias, afetos e pensamentos; dois) no efeito aturdito de Jacques Lacan, em que há um estranhamento primeiro em au tour dit pelas reverberações das voltas do dito; e três) na escuta fonográfica de Oswald de Andrade, do escrever o que se ouve ao modo de uma escrita dos sons, dos sentidos ambíguos das palavras.

Imbuída dessa escuta sensível filosófica e literária ouvi aturdidamente Sveglia e deixei-me levar pelos sons do vocábulo, o que possibilitou fonograficamente escrever e transcriar poeticamente Sveglia na palavra-valise exvelha, formada pela partícula ex e pelo significante “velha.”

Desta palavra-valise mais direções sobre os instantes despertadores puderam ser notadas. Em conjunto a combinação das partículas permite ler a velha que deixa de ser velha quando se descobre viva pelo desejo que nela pulsa. Ou seja, ela acorda para uma vida antes expulsa, que agora ao invés de causar repulsa, entendida como afastamento, re-pulsa, isto é, volta a pulsar. A partir dessa auscultação foi possível deparar-se com chamados e pedidos do desejo a Sveglia feitos pela narradora nas versões de “O relatório da coisa.” Cito os trechos: Me aconteça, Sveglia, me aconteça. (…) Dá-me de volta o desejo.

Em separado, as partículas continuam desovando mais sentidos. A palavra “velha” atualiza a imagem-clichê da coisa velha na sociedade capitalista, daquilo que não tem mais lugar porque não carrega a marca do novo-sempre-de-novo da mercadoria. Essa sociedade confere à velhice o estereotipo do resto, não a considerando mais como o sábio das comunidades arcaicas. Este “sintoma da modernidade” desde a velhice Walter Benjamin detectou em “Experiência e pobreza”, ensaio de mil novecentos e trinta e três, e ainda hoje ele pode ser identificado, por exemplo, nos idosos vítimas do descaso público e governamental quando os deixa morrer de corona-vírus. Além disso, o vocábulo reúne as protagonistas idosas que perpassam várias narrativas de Clarice Lispector. Já o prefixo ex proporciona a construção poética da superfície sensível de despertar, a pele, por aglutinar várias características provenientes dos corpos: exposição, extensão, exterioridade, êxtase e extimidade.

Em função da propagação difundida pelo vocábulo Sveglia ele se torna um elemento díspar, ou mesmo uma palavra esotérica nos termos de Gilles Deleuze, capaz de armar séries heterogêneas. Por isso a tese dispõe séries a partir do que os significantes Sveglia e exvelha, enquanto pontos monádicos, envolvem e desenvolvem: os desdobramentos poéticos-literários da experiência de acordar que proliferam dos contos, romances e relatos de Clarice Lispector.

Pelo caráter disseminador da palavra Sveglia e dado o lugar que ela ocupa na constelação armada pela tese, considerei oportuno incluir nela a terminação –maquia e criar uma palavra para dar nome ao trabalho: Svegliamaquia. Ela expressa algumas características que impulsionaram as montagens das séries. Primeiro, o aspecto maquínico de Sveglia tanto como uma máquina de séries textuais clariceanas quanto como um relógio alegórico do tempo de acordar. Segundo, a mascarada de personagens teatrais que se encontra nos traços performáticos do relógio nas narrativas de Clarice. Terceiro, as propriedades de tudo aquilo que exerce certa magia, atração, chamado a ponto de desencadear narráveis.

Todas as direções desdobradas na palavra Sveglia se encontram nas versões de “O relatório da coisa.” Como objeto Sveglia encarna um despertador do e para o agora. Cito outra vez as narrativas: A marca é Sveglia, o que quer dizer “acorda.” Acorda para o que, meu deus? Para o tempo, para a hora, para o instante. Esta modalidade temporal de acordar conflui com as proposições de Walter Benjamin quanto ao momento de despertar. Cada instante é um momento de despertar. Ele não é um ponto isolado. Pois ele tem a capacidade de se repetir e pode surgir a qualquer momento como desdobra o termo alemão Erkennbarkeit utilizado por Walter Benjamin para qualificar o despertar. É um agora da (re)conhecibilidade com a potência e a habilidade de acordar para o tempo que não cessa de irromper, de ressurgir. Em termos benjaminianos, acordar implica em reconhecer o que já estava presente, mas era impossível de ser visto, lido e ouvido, o sensível que agora pode ser reconhecido pelo inteligível. Implica também na ação de “esfregar os olhos” e acordar para o transcorrer do tempo, despertar do sonho de consumo que nos consome e nos aliena da realidade sensível, corpórea, impedindo que memórias e experiências possam ser articuladas, tramadas.

O chamado imperativo acorda! desperta! levanta! se encontra com facilidade nos fragmentos clariceanos. Através de chamados a despertar da narradora e da personagem forma-se um diálogo entre elas. Retomo as narrativas: Sveglia: acorda, mulher, acorda para ver o que tem para ser visto. É importante estar acordada para ver e Acorda-me, Sveglia, eu quero ver a realidade. As invocações tecem as dobras entre vida e sonho que se enlaçam na dialética benjaminiana do despertar. Nela o sonho, o sono e o chamado se misturam em um limiar que conduz a instantes de acordar. Essa característica do onírico era familiar a Walter Benjamin, que o concebia como lugar de passagem onde irrompem as instâncias do acordar. Neste caso, tem-se um encontro da leitura benjaminiana com a psicanálise através dos sonhos de despertar. Se psicanaliticamente falando o sonho é uma das vias de acesso à Outra Cena do Inconsciente, onde moram os desejos e as memórias mais antigas da humanidade, benjaminianamente falando, é com base no sonho, na sua recordação e interpretação que advém saberes ainda não conscientes do passado, capazes de produzir despertares.

O acordar-se do svegliarsi mostra torções reflexivas: de agente e paciente na ação de despertar, de sujeito e de objeto em relação aos objetos de consumo, de si como outro que faz levantar. Tal desenvolvimento expõe um estranhamento da experiência de despertar, uma relação de exterioridade íntima consigo, de algo em si como um outro que acorda e chama a levantar. Essas torções se encontram na narrativa clariceana a partir das relações entre a dona do relógio, Sveglia e a narradora a partir do jogo do “quem é dono de quem?” e na experiência relatada da escuta de Sveglia por telefone. Cito “O relatório da coisa”: “Já ouvi o Sveglia, por telefone, dar o alarma. É como dentro da gente: a gente acorda-se de dentro para fora.”

Todas as direções provenientes dos pontos monádicos Sveglia e exvelha conduziram ao despertar sensível da memória em Walter Benjamin, operado através de movimentos de recordação e rememoração, de memória e esquecimento, que requerem os cinco sentidos do corpo e a sensibilidade para ouvir os ecos do tempo, o ressoar das palavras. A leitura de “O grande passeio” e “Viagem à Petrópolis”, de Clarice Lispector acompanha esses movimentos sensíveis do despertar da velha Mocinha e arma um despertar em exvelha. Na narrativa a protagonista idosa vive a perambular pelas ruas do Rio de Janeiro, esquecida de si mesma e do mundo no qual todos os parentes haviam morrido. Sem mesmo nem saber o porquê ela passa a morar com uma família em Botafogo. Depois de certo tempo os integrantes da família estranham a presença dela no lar. Aí decidem descartar Mocinha levando-a a Petrópolis. Para ela, o descarte disfarçado de passeio se torna um meio para passagens ao despertar, nos quais ela recupera o sensório do corpo, esse “sentir-se sentir” no dizer de Jean-Luc Nancy, recorda imagens do passado e as rememora no presente.

O percurso trilhado pela tese na leitura das versões de “O relatório da coisa” pode conduzir a algumas questões sobre os instantes de despertar. Para finalizar esta apresentação, gostaria de destacar duas delas. A primeira é a da estética do acordar. Ela foi propiciada pelos movimentos desdobrados pelos pontos monádicos Sveglia e exvelha: despertar os cinco sentidos do corpo, acordar a superfície sensível da pele, na qual se excrevem, como diz Georges Bataille, as marcas dos tempos, dos afetos, dos desejos. Acompanhando as constatações benjaminianas desde as passagens à modernidade, há uma crise da percepção, no dizer de Susan Buck-Morss. Desligados e anestesiados da própria realidade sensível e corpórea, a vida se torna um sono embalado pelas ilusões que cobrem as mercadorias, entorpecimento dos sentidos e alienação. Assim esquecidos das memórias singulares e coletivas, que se agitam para se fazer ouvir, carecemos de experiência e memória. Por isso a urgência em restituir as sensibilidades dos corpos através de uma modalidade especial de despertar: como um recordar. Remontar, remembrar corpo e alma, rememorar o passado no presente, ter a sensibilidade para sofrer as confluências temporais que abrem ao futuro e possibilitam tomar posição ao acordar.

A segunda das questões atravessa a primeira e diz respeito às passagens temporais em decorrência das mudanças nos modos de produção. A transição moderna ao tempo veloz da maquinização e robotização, além de anestesiar os sentidos esvazia o tempo dos saberes, memórias e experiências provenientes dele. A verve clariceana está atenta a essas passagens e com as versões de “O relatório da coisa” lança inúmeras provocações à lógica do mercado, aos objetos de consumo e ao tempo capitalista. Mais do que isso, pensa e questiona o status quo a partir do relógio e das alegorias temporais construídas por ele. Distinto da suposição do tempo quantificado, ele mostra outra coisa: os choques, as interrupções, as irrupções, as confluências temporais de Cronos, Aion e Kairós, a vida pulsante entre nascer-morrer, morrer-renascer. Assim o relógio chama a despertar para o agora, para a vida que bate no ritmo do coração, este relógio que cada um tem consigo. Para ouvir o chamado e fazer com que o instante esteja mais vezes presente é preciso dar corda no coração e acordar os muitos sentidos para fruir o tempo. Pois a chance inesperada e oportuna está sempre aí, como a vinda do Messias para Benjamin. Ela pode surgir a qualquer momento desde que se tenha a sensibilidade para agarrá-la com as mãos.

Nota

A defesa de tese foi realizada em 9 de outubro de 2020. O número de mortos por Corona-vírus citado no texto refere-se a este dia.