O berço, a cova e a herança

No domingo, 11 de agosto de 2024, comemorou-se mais uma data especial para os nossos laços familiares e de origem, o Dia dos Pais. Esta é uma das efemérides que nos lembram das nossas relações humanas mais profundas e intensas, daquilo que nos tornamos, dos lugares que ocupamos como filhos e filhas e como pais e mães.

Não vou falar sobre os pais vivos. Mas sim daqueles que já se foram, que não estão mais conosco, no plano do encontro e do real da carne. Refiro-me aos pais que partiram desse mundo e passaram a habitar outros planos. Sim, outros planos. Não só a vida pós-morte (para quem acredita), mas no que eles se mantêm vivos em nós. Nos laços que conseguimos estabelecer uns com os outros, com os textos que lemos, com os trabalhos que realizamos. E se eles conseguem sobreviver em nossa memória é porque algo foi transmitido, atravessou-nos e temos o potencial de levar adiante.

Meu pai morreu com 60 anos em 11 de agosto de 2016. Era uma quinta-feira e no final de semana seria o Dia dos Pais daquele ano. A cada ano que passa a data comemorativa fica mais próxima do dia de falecimento. E neste ano de 2024 as datas coincidiram: o Dia dos Pais e o aniversário da morte dele. Então esta comemoração se tornou uma recordação dupla para mim. É como se ele fosse duas vezes rememorado — pelo que foi, um pai e pelo que é, um pai morto. Meu pai queria ser lembrado e, pelos acasos da vida, pois nunca se sabe a hora da morte, ele conseguiu.

O pai acreditava em vida após a morte, em reencarnações. Tinha o costume de dizer “quando eu não estiver mais aqui” para alguma recomendação. Ficava feliz nos velórios que comparecia e gostava de passar a madrugada velando o corpo e contando piadas. Para ele, a morte era uma celebração. Era um renascimento.

Ele amava as plantas medicinais. Era um autodidata no estudo dos livros herbários. Costumava caminhar pelos pastos e terrenos baldios à busca de plantas curativas. Fazia remédios naturais e unguentos para mim, minha irmã e outras pessoas. Ele tinha o desejo de ajudar as pessoas e curá-las dos seus males, sejam os do corpo, sejam os do espírito. Na parte anexa à casa onde morávamos, ele montou um consultório, com mobília, mesa de escritório e maca. Imaginava a garagem como a sala de espera. Mas a realização desse sonho ficou apenas na cabeça dele.

Não bastasse um pai morto, tenho mais dois: Sigmund Freud (1856-1939) e Jacques Lacan (1901-1981). Obviamente nossos laços não são consanguíneos, mas sim daqueles que transcendem gerações em virtude do ofício que exerço como psicanalista. Eles são os pais da psicanálise. E como um depende do outro: se há pai há filho, é natural que psicanalistas sejam filhas e filhos da psicanálise. E consequentemente herdeiras e herdeiros desse legado.

Freud faleceu com 83 anos. Foi ele quem introduziu em nossa cultura a ideia do parricídio: desde a Interpretação dos sonhos (1900) com suas leituras de Hamlet, de Shakespeare, e Édipo-Rei, de Sófocles e mais adiante em Totem e Tabu (1913) com o mito da horda primitiva e “Dostoiévski e o Parricídio.” (1928) Transformou as reflexões e experiências clínicas em conceito: o complexo de Édipo. Poucos antes de morrer e já sabendo que morreria em breve em função do câncer na mandíbula e no palato, Freud escreveu Compêndio de Psicanálise. Iniciado em 1938, o material ficou inacabado em razão da morte de Freud em 1939, sendo publicado postumamente em 1940. Trata-se de uma verdadeira reunião das teses que constituem a psicanálise, um resumo da teoria e prática psicanalíticas. Ao final do texto, que poderíamos chamar de testamento, Freud insere uma frase de Fausto (1808), de Goethe: “Aquilo que herdaste dos teus ancestrais, conquista-o para fazê-lo teu.” Como um lembrete deixado a nós de que herança recebida implica em um trabalho de incorporar e fazê-la própria.

Lacan morreu com 80 anos. Podemos considerá-lo como um dos filhos da psicanálise em primeiro lugar quando faz o movimento de “Retorno a Freud” na década de 50 do século passado. Era um momento no qual a experiência do inconsciente, como proposta por Freud, se perdia. Nesse caminho de retorno ao pai, Lacan criou conceitos e deu instrumentos para que psicanalistas pudessem se orientar no trabalho. Lacan deu à psicanálise o estatuto de uma ciência, com seus matemas e nós topológicos, com um discurso próprio: o discurso analítico. Ele recriou a psicanálise. De filho passou a pai da psicanálise.

Mas a transmissão da herança de Lacan foge do comum. É ao modo do mestre zen budista. Se com Freud temos frases literárias, com Lacan temos o desorientar, desnortear do qual existem vários exemplos: o estilo gongórico na escrita, as falas provocativas transcritas de seus seminários. Uma de suas frases folclóricas é “façam como eu, não me imitem.” Ou seja, não tentar copiar o mestre, mas sim colocar algo de seu, fazer algo com aquilo que causa sintoma e faz sofrer, um transformar de modo que possa fazer a psicanálise avançar e se reinventar. Em um dos seus seminários nos anos de 1975 e 1976 Lacan nos convidou a ir além do Pai. É um prescindir do Pai, dispensando-o, porém servindo-se dele.

O percurso dessa crônica sobre os pais mortos e as heranças deixadas me faz pensar que, ao rememorar a memória dos nossos pais, e de nossos entes queridos, nos lembramos do destino do qual não temos escapatória: a morte. É um lembrete de que a vida é uma passagem entre o nascer e o morrer. Que nesse hiato entre o berço e a cova fazemos algo da nossa existência. E esse será o legado que deixaremos aos outros quando não estivermos mais neste mundo.

E como servir-se de um Pai? Entendo que seja com as palavras, as frases e os desejos que nos são transmitidos com atos, silêncios e sonhos. E o que podemos fazer com eles. Se o pai está morto, é porque ele está vivo em mim, mas que não é mais ele e sim o que pude me tornar. E nesse sentido os caminhos meus e os dos meus pais se cruzam: o trabalho com a cura pelas palavras e manter viva a psicanálise.

FONTES:

Compêndio de Psicanálise e outros escritos inacabados, de Sigmund Freud. Edição Bilíngue. Tradução de Pedro Heliodoro Tavares. Editora Autêntica, 2016.

O Seminário, livro 23: O sinthoma (1975-1976), de Jacques Lacan. Tradução de Sergio Laia. Editora Zahar, 2007.

Artigo “Folclore lacaniano”, publicado na Lacuna: uma revista de psicanálise. Escrito pelo coletivo Ultimíssimo Lacan. Disponível em: <https://revistalacuna.com/2015/09/29/folclore-lacaniano/>

NOTA:

Esta crônica foi publicada pela primeira vez no jornal Cidade Notícias, em 16 de agosto de 2024. Meio Impresso e Digital com circulação nas cidades de Braço do Norte, Orleans e São Ludgero (SC)