Mãos podem falar?

Eu era um menino, ainda não havia completado 13 anos. Há dois anos eu adoecera, já havia passado até por uma instituição que faz um tratamento com água e não havia melhorado. Aí me levaram a um médico, um tal de Dr. Freud, um médico diferente, que conversa com as pessoas e pela conversa consegue curá-las. Eu não acreditei muito nisso naquela hora. Mas meus pais acreditaram. E além do mais, eu não queria falar, não conseguia falar. Muito menos com um médico.

Eu não estava disposto a conversar, mas eu fui. Ficava lá com as mãos nos bolsos. Neles eu guardava algo que eu rolava entre os dedos, colocava de novo no bolso, retirava e assim sucessivamente. O tal do médico me olhava brincando com aquilo e não me perguntou nada. Um dia eu abri a mão e mostrei a ele: nada mais que um pedaço de miolo de pão bem amassado.

Na sessão seguinte, fui mais uma vez acompanhado da massinha caseira de modelar. A gente começa a conversar e eu me distraio modelando figuras, que eu faço de olhos fechados. Às vezes eu me distraio pra não pensar, não lembrar e quando eu fecho os olhos aquela imagem me vem à mente, tão clara quanto uma noite de lua cheia. E aí passei a modelar bonequinhos, pequenos homens. O primeiro deles, o que fiz de olhos fechados, tinha cabeça, dois braços, duas pernas e no meio delas uma  longa protuberância. Quando abri os olhos e o vi o protótipo em minhas mãos, eu o desfiz rapidamente e fiz outro. Com cabeça, dois braços, duas pernas e duas protuberâncias ligeiramente compridas nas costas e no peito.

Naquele momento, fica um silêncio. O doutor olha para o novo bonequinho. Não diz nada. Ele suspende o silêncio quando me pergunta: “você conhece a história do rei romano que fez uma pantomima no jardim para dar uma resposta a um mensageiro do filho?” Eu respondi: “Não é aquela história do escravo com a resposta escrita na cabeça raspada?” “Não”, diz ele, “essa é uma história grega. Vou te contar uma outra que pertence à história romana.”

Enquanto eu modelava mais uma vez uma figura humana prosaica, ele me conta a seguinte história: O rei Tarquínio, o Soberbo, fez seu filho Sexto infiltrar-se em uma cidade latina inimiga. O filho, que nesse meio tempo conseguiu recrutar partidários nessa cidade, enviou um mensageiro ao rei com a pergunta sobre o que mais deveria acontecer a partir daí. O rei não respondeu, mas entrou em seu jardim, fez com que a pergunta fosse repetida e em silêncio cortou as papoulas maiores e mais belas. O mensageiro não teve escolha senão reportar isso a Sexto, que entendeu o pai e providenciou para que os cidadãos mais ilustres da cidade fossem eliminados por assassinato.

Enquanto ele falava, eu parei de amassar. A história chama minha atenção. Quando ele descreve o que o rei fez no jardim e profere as palavras “em silêncio, cortou”, minhas mãos foram mais rápidas que um raio e vupt! Arranquei com toda ira guardada em mim a cabeça do boneco. Ali, naquele momento senti que ele me entendeu. Aí eu pude falar daquilo que me atormentava há tanto tempo.

Por quê? Por quê? Por que ele tinha que aparecer? Por que eu tinha que vê-lo assim sem roupa? Por que tinha que ser na minha frente e de noite? Se eu tivesse coragem eu o matava, do mesmo modo como as belas papoulas foram cortadas. Eu queria morrer. A imagem não saía da minha cabeça! Aquele membro longo e enrijecido. E a cada vez que a imagem me vinha à mente meu corpo reagia, agia por si próprio. Da mesma forma como naquela imagem, meu corpo se transformava.

Depois de algumas conversas com o Dr. Freud, pude entender quem eu era, no que eu estava me tornando.

NOTAS:

  1. Crônica baseada em um dos casos relatados por Sigmund Freud no capítulo “Atos sintomáticos e casuais” em Psicopatologia da vida cotidiana: sobre esquecimentos, lapsos verbais, ações equivocadas, superstições e erros (1905). Tradução de Elizabeth Brose. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2023, p.274-276.
  2. Esta crônica foi utilizada como texto para a performance “Mãos podem falar?” no lançamento do volume de Obras Incompletas de Sigmund Freud: Psicopatologia da Vida Cotidiana, promovido pela Maiêutica Florianópolis em 12 de maio de 2023. Com atuação de Eliane Carpes e direção de Cléia Regina Canatto. Confira no link o vídeo da performance.