Desejo de desejo

Desejo é uma palavra mágica. Parece que dela ressoam histórias dos contos que ouvimos e fantasiamos desde pequenos. Ela nos leva longe, por mais perto que estejamos. Mas essa palavra mágica não fica por ali, naquele espaço e naquele tempo que poderíamos chamar de ‘perdido’. Trazemos ela conosco todos os dias. Já meio camuflada, andando por aí: presente e ausente, ausente e presente. Em cada gesto e em cada ato o que nos move é um desejo. Ao fazer uma escolha, por menor que seja, está em cena um desejo, ainda que não se saiba sobre ele.

Parece tão fácil dizer “meu desejo é…”. Mas ao procurar completar a frase várias perguntas surgem. O que eu quero hoje é o mesmo que vou querer amanhã? Por que desejo determinada coisa? Qual é o traço deste desejo na minha história? Por que procuro realizar algo e quando chego perto parece que não era aquilo que eu queria? Por que quanto mais me esforço para realizar um desejo algo sempre dá errado e acontece o contrário do que eu esperava? Por que sempre fica aquele gostinho na boca de que falta algo mais quando um desejo se realiza?

Desejo é uma palavra que produz perguntas. Tem umas mais insistentes, que não passam em branco sem deixar seu rastro. Qual é o meu desejo? Qual é o desejo da mãe? O que deseja o filho? O que deseja uma mulher? E o homem, o que deseja?

Se ao falar sobre desejo, surgem perguntas, é preciso fazer um movimento, percorrendo um caminho de pergunta a pergunta. O que resta é lançar textos sobre este ser errático e obscuro chamado desejo. E assim inicia a série Desejo de desejo com um texto sobre o desejo que nos constitui como seres falantes e desejantes: “o desejo do Outro.”

O que nos constitui: o desejo do Outro

Fotografia de Jay Maisel.

A primeira formulação de Jacques Lacan sobre o desejo é “o desejo do homem é o desejo do Outro.” Quem é este Outro? É um lugar. Primeiramente nos pais. (Depois, outros ocuparão este lugar. Os pais são o início desta série.) O desejo deles possibilita à criança um acesso a outro espaço: o do desejo. Para desejar, é preciso ser desejado: por este Outro em falta, que não é completo e que por isso deseja.

Antes mesmo que um pequeno gérmen de vida se aloje na barriga da mãe, há um projeto de uma criança na mente dos pais. Quando o ser de fato começa a se formar, já estão escolhidos por eles nomes, profissões, gostos e ficam a imaginar o que a criança poderá ter de parecido de cada um. Esses detalhes tão pequenos, antes mesmo do nascimento de uma criança, são especiais. Consistem nas primeiras inscrições do desejo dos pais.

No seu desamparo, a criança depende dos pais. Eles são primordiais para ela: aqueles que podem realizar o que ela ainda não consegue sozinha. São seus primeiros objetos de amor. Nessa relação, outras marcas se inserem. Marcas no corpo ao ser alimentada e vestida, ao ser olhada e chamada, enfim, amada.

Assim, a criança quer ser o que os pais desejam. Mas, no meio dessa busca, ela se questiona sobre algo que está além desse lugar almejado por ela. Há algo que aparece nos ditos dos pais que a instiga a formular a seguinte pergunta: “eles me dizem isso, mas o que é que eles querem mesmo?”

Fotografia de Jacques Schumacher.

Ela observa que existe algo para além do que dizem que querem. Eles desejam alguma coisa que não só ela e que está entre eles. É aí que entra em cena essa falta que é o desejo. (Ou pelo menos, podemos dizer que é uma dessas cenas em que ele surge na vida da gente.) Por perceber que os pais estão em falta, a criança descobre uma incompletude: é um ser em falta, é uma falta-a-ser.

Não desejamos uma coisa qualquer, o que quer que seja. O desejo não é algo único e original, uma criação livre nossa. Não nos é possível negar nossas origens. Ele está enraizado neste lugar: o do Outro. O desejo foi marcado pelas relações que tivemos com nossos pais, pelos lugares que os vimos ocupar e que queríamos estar. As marcas dessa experiência estão impressas em nós, nos nossos corpos. O que desejamos vem de longe e está conosco: está na água em que nos banhamos, está no lugar de onde viemos, está na nossa história.