"Encontro", de M. C. Escher

Carta à Transferência

Não teria como me dirigir a ti, Transferência, senão escrevendo uma carta, senão fazendo-lhe um envio: de um punhado de letras, de um conjunto de troços, de buracos que encontrei no caminho. Tenho perguntado por ti há muito tempo, desde o começo do meu percurso na psicanálise para ter tuas notícias, para saber dos teus indícios, do teu lugar.

Dizem que tu, Transferência, és o que está no começo da psicanálise, mas o que és? Como saber se estás “aqui e agora”? Como saber se teus fios foram tecidos, se tuas tramas foram feitas? O que é isso que se transmite através de ti e que chega até mim e a tantos outros a partir de Sigmund Freud?

Não teria outro modo de me dirigir a ti que não fosse escrevendo uma carta. Pois é como me sinto quando ocupo um lugar de escuta: fazendo envios e recebendo envios, recebendo cartas e enviando letras. Esse gesto é próprio da carta, esta que “sempre chega ao seu destino”[i] como alerta Jacques Lacan no seu comentário sobre A carta roubada, de Edgar Allan Poe. Pois a destinação é o próprio envio e o percurso desse envio: é desvio e extravio, é envio e reenvio.

Do mesmo modo como se envia uma carta, um sujeito se dirige ao Outro. É uma carta ao modo de uma destinação de letras, de recebimento de significantes de um sujeito. No endereçamento ao Outro, uma verdade, a do inconsciente, pode ser comunicada e transmitida.

No envio do sujeito ao Outro, o inconsciente se faz ouvir. Ele produz efeitos de linguagem para serem ouvidos: um sonho, um chiste, um sintoma, um ato falho. Estes surgem, irrompem e se dirigem para serem escutados por alguém, mesmo que ele não tenha se encarregado da tarefa de escutar.

É por esse lugar do Outro, este lugar que dizem que é teu, Transferência, que a palavra que sai de minha boca, de maneira transformada, pode ser ouvida e apropriada por aquele que a recebe. Essa palavra é enviada como uma interpretação, como letras recebidas do inconsciente e de novo enviadas com diferença ao Inconsciente, essa bela que se esconde, que se abre e se fecha e nessa pulsação abre uma hiância. É a palavra metaforseada em interpretação que apela à reabertura, tocando a fechadura da porta do Inconsciente.

Pois, sei que tu, Transferência, és a via de acesso ao inconsciente, via que se mostra e que se esconde, se abre e se fecha, quando a repetição impede o recordar, quando o repetir se torna uma resistência ao rememorar.

 És tu, Transferência, uma via de acesso, ainda que precária e frágil, não só feita de repetição, mas de a partir dela restituir a continuidade de uma história, que uma mesma história possa ser escrita com diferença.

 És, tu, transferência, o que sustenta a fala, o vínculo. Se a fala se mantém em uma análise, é porque estás presente.

“Encontro”, de M.C. Escher.

Tua presença diz respeito a um lugar onde um sujeito se endereça e se dirige de um modo, em uma forma de relação, uma forma de amor: o lugar do sujeito suposto ao saber. É uma função de passagem e de posição, de desejo e de saber. Uma função e um lugar que precisam ser ocupados por alguém, que precisa se fazer corpo: alguém a quem nomear e remeter, a quem falar.

 Do saber do sujeito suposto, nada sei. O que importa mesmo é a relação do sujeito com o saber do inconsciente, que a mim se dirige por causa de ti, Transferência. E não basta dizer o famigerado bordão só sei que nada sei. Sei o que é o desejo, a sua estrutura em falta, ou seja, um saber sobre o desejo como falta-a-ser, como “oco do saber.”[ii]

Porém, não sei de antemão o que deseja aquele que embarca na aventura de uma análise. É por não saber que preciso escutar e fazer falar. Para captar o inconsciente com o próprio inconsciente, é preciso esquecer, ou pelo menos fingir esquecer, exercitar-se no esquecimento e se deixar surpreender a cada vez, como se fosse a primeira vez, deixar-se ser surpreendido pela verdade subjetiva que do inconsciente advém.

 É por não saber que preciso querer escutar o inconsciente. E ler o traço das letras que no inconsciente fazem instância, que bordam e fazem borda “no furo do saber.”[iii]

 “Para escrever tenho que me colocar no vazio”[iv], exprime a personagem do autor em Um sopro de vida, de Clarice Lispector. Para escutar também preciso me colocar no vazio. Não é fácil ser o vazio em si. Mas esse vazio é um estado, uma disposição, uma disponibilidade e uma entrega diante do acontecimento, do aqui e do agora. É estar à escuta daquilo que o afeta o corpo, sons e sentidos. É a disposição de receber o espanto e a surpresa e fazer assim um semblant, um sentido (sens) branco (blanc) que a homofonia dessa palavra possibilita escutar.

 Falar da escuta na poltrona é uma metonímia para o que é ser chamado a ocupar o lugar do Outro, esse lugar que vem de ti, Transferência. Pois, o inconsciente se comunica por contato, por um tato, por um toque. Uma mensagem. Uma chamada telefônica. Um recado. Uma pergunta. Uma palavra. Um afeto. Um incômodo. Uma repulsa. Um primeiro encontro, um primeiro contato, um contato simples e que pode ser único. Mas também sempre renovado a cada tato com o inconsciente do Outro, com o toque de superfícies, de inconscientes.

Através de ti, Transferência, já ouvi falar dos pagamentos e não só o do analisante. É um pagar com as palavras, com sua pessoa, com seu ser. É um pagar para estar. Para estar em um momento, em um aqui e agora, para estar de corpo presente. Essa presença ocupa um lugar e implica uma escuta. É a presença de um corpo, de uma voz, de um olhar.

Dessa receptividade, dessa entrega e disposição à escuta, leio um eco entre a ética da análise e a ética estoica como também notou Jacques Lacan. Pois, o que escuto é por ouvir: por captar, por reconhecer, por sentir com o corpo no aqui e agora este encontro faltoso, um encontro marcado com um real que atravessa e escapole.

 Sempre cismei com esse nome: desejo do analista. Um nome charmoso e bonito, mas uma noção difícil e radical. Que desejo é esse que se diz que se transmite através de ti, Transferência? Desejo que não é desejo, que é um desejo de não desejar. O que quer dizer não querer desejar? Afinal, não querer desejar é desejar. Se desejo do analista não é desejo, por que se chama desejo? Podia ser castração do analista. Podia ser qualquer outra palavra. Mas não. É desejo.

 E não é um desejo qualquer. Como aponta Lacan, o desejo do analista consiste em ser “um ponto que só é articulável pela relação do desejo ao desejo.”[v] Ou seja, é um encontro de dois desejos e de passagens de um ao outro. A passagem seria a do desejo de escutar o seu próprio desejo inconsciente ao desejo de escutar o inconsciente do outro. Esta passagem implica o encontro dos dois desejos através de um desejo de escuta, o ir de encontro ao desejo inconsciente.

“Laço de união”, de M.C. Escher.

 Esse é o amor que sinto por ti, Transferência, que não é só aquele do engano do amor, que amar é querer ser amado. Nosso amor é um encontro, é um “laço do desejo do analista com o desejo do analisante.”[vi] Um amor que produz a transmissão de um desejo: de um saber, de uma posição, de um lugar.

 Transferência, ainda não consigo te dizer adeus nem até logo ou mesmo tchau. Por algum motivo, não consigo me despedir de ti. Talvez ainda não tenha chegado a hora. Talvez o fio ainda não se soltou, não se rompeu. A ficção ainda não se desfez entre mim e ti. Ainda resta esse fio que se afina como se afina um instrumento, como se afina aquilo que perde a largueza, que se afila como aquilo que, ao se afinar, se finda.

 Então, como tem sido desde o começo, mais uma vez digo: eu fico por aqui.


[i] LACAN, Jacques. (1966) “O seminário sobre ‘A carta roubada’ ”. In: Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p. 45.

[ii] LACAN, Jacques. (2001) “Proposição de 9 de outubro de 1969”. In: Outros Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 255

[iii] LACAN, Jacques. (2001) “Lituraterra”. In: Outros Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 18.

[iv] LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978, p. 13.

[v] LACAN, Jacques. (1964). O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Tradução de M.D. Magno, 2008, p. 229.

[vi] Idem p. 246.