As repetições, os fins e os começos em “Corra, Lola, corra”

Três é o clássico número da repetição. Quando algo fracassa pela primeira vez, ficamos tocados por isso e prosseguimos para que não ocorra novamente. Até o momento que o fracasso acontece novamente e já começamos achar que tem algo estranho. Na terceira, não temos dúvida. Há algo de estranho aí, sim. Poderíamos chamar de destino a sina de fracassar, sofrer e de repetir o fracasso. Caso não fosse tamanho incômodo viver a repetir a mesma sina, diríamos que “é coisa de Deus, é o destino, essa é a minha vida e já me acostumei com ela”. Ou seja, a repetição é uma pergunta, uma questão que se repete até que seja resolvida. É assim que chegamos à repetição, este elemento vital na construção do filme Corra, Lola, corra, de Tom Tykwer e, não por acaso, o filme traz alguns elementos vitais da repetição no cotidiano.

“Corra, Lola, corra” é repleto de figurações da repetição. A película começa com música tecno: ritmada e constante. O pêndulo do relógio antigo vai de um lado a outro continuamente. A situação de conflito que engendra o filme se repete por três vezes: Lola tem 20 minutos para conseguir 100 mil marcos. E assim, ela evita que o namorado Manni seja morto pelos gângsteres. Mas, sobretudo, a película certeiramente coloca mais do que figurações, mas uma questão sobre a repetição. Melhor dizendo, a repetição é uma questão, um enigma que se faz ver através da abertura do filme, do jogo de citações e da fala do guarda do banco, antes que acompanhemos as três chances que Lola tem para salvar o amado.

Podemos ver a questão da repetição através dos movimentos das perguntas. O texto de abertura do filme fala sobre isto: o ser humano é um ser que pergunta, que questiona sobre as origens e a existência. Neste movimento de questionar, o sujeito faz perguntas. A cada pergunta, uma resposta se faz ouvir. E desta resposta, como um movimento contínuo de busca, o sujeito faz outras perguntas. No movimento de perguntas sem fim, no repetir-se deste movimento, há algo mais do que constante: a pergunta é sempre a mesma nas mais variadas formas. E a resposta também segue sendo a mesma em distintas manifestações. Assim, podemos colocar em jogo a citação do poema “Little gidding”, de T.S. Eliot, que a película faz referência como uma chave de leitura para o enigma das perguntas, do próprio movimento de repetir e da busca constante:

Não cessaremos nunca de explorar

E o fim de toda nossa exploração

Será chegar ao ponto de partida

E o lugar reconhecer ainda

Como da vez primeira que o vimos.

O jogo precisa começar. É o que anuncia o guarda do banco onde o pai de Lola trabalha. É um jogo de 90 minutos, uma bola e um campo, diz o guarda. E aí, ele lança a bola de futebol ao alto assim como o lançar dos dados. Uma das citações que acompanha o fragmento de T.S. Eliot é “o depois do jogo é o antes do jogo”, do treinador alemão de futebol Josef Herberger. E assim se inicia a saga de Lola ao correr atravessando o relógio.

Antes das sucessivas chances, há um pequeno preâmbulo. Lola chega tarde, não consegue ajudar Manni no trâmite de venda de diamantes. A motoneta dela é roubada. Ela pega um táxi, mas o taxista dá uma volta maior que o necessário. E quando ela chega ao ponto definido, Manni não está mais lá. Ele, por um descuido, perde a bolsa que continha o dinheiro que deveria ser passado aos gângsteres. O dinheiro perdido deixa Manni entre a bolsa ou a vida. Então, ele resolve chamar Lola.

O telefone toca. Lola atende. É Manni pedindo ajuda. O telefone é lançado ao ar assim como os dados. A roleta gira entre as imagens de quem Lola pode recorrer. Escolhe o pai. E assim, a personagem traça um caminho. Lola foge? Não, Lola corre. Corre muito. E nós acompanhamos a corrida, corremos com ela a cada passo, a cada respiração ofegante. Estamos com pressa assim como ela de resolver a questão, de resolver o enigma. Ou de, ao menos, ganhar mais uma chance, mais uma vida neste jogo para resolver a questão que dá existência à vida. E Lola corre. Atravessa obstáculos. Acasos surgem mudando o tempo dos passos, mas mantendo a rota de sua busca, abrindo pequenas brechas entre um “chegar antes” e “chegar depois” e eventos que se sucedem nessas aberturas.

Lola tem três chances de, na repetição, fazer uma diferença. A postura da personagem é o que muda diante dos obstáculos. Cada vez que Lola toca e esbarra em um personagem é um ciclo que se desdobra de maneiras diferentes. Ou seja, não se trata de uma pura repetição simples, a repetição do idêntico, mas de, pela repetição encontrar algo que faça a diferença. Portanto, é uma repetição em espiral. Este é outro elemento do filme que aparece em vários detalhes desde a corrida de Lola pelas escadas, o movimento da câmera que mostra a mãe de Lola ao telefone, os espirais que adornam os travesseiros enquanto Lola e Manni conversam deitados, o espiral que gira ao fundo enquanto Manni está na cabine telefônica.

Na primeira chance, Lola morre ao não conseguir o dinheiro e ao participar do assalto com Manni. E no meio disso, ela descobre que não é filha legítima de seu pai e que este vai recomeçar a vida com outra mulher. Na segunda volta, Lola assalta o banco do pai, impede Manni de fazer o assalto ao mercado, mas é ele quem morre atropelado. Já na terceira vez, Lola não consegue encontrar o pai. Este saíra com o colega de trabalho em quem Lola esbarra sobre o carro. Lola corre de olhos fechados desesperadamente e quase é atropelada. O atropelo a faz ver o cassino, onde aposta as fichas de sua vida no número 20 e assim consegue o dinheiro. Enquanto isso, Manni cruza com o mendigo que encontrou a bolsa de dinheiro. Ele consegue reavê-la e repassar o dinheiro ao gângster.

Este enredo tem um final feliz, uma trilogia que, de erro em erro, levou a uma resolução. Nós continuamos aqui, em vida, girando nos espirais das repetições para responder uma pergunta, uma questão. E por isso, nos movimentamos, percorremos, fazemos uma busca infinita como um espiral de voltar ao começo, começo que precipita um fim, fim que retoma um começo. E então, mais um verso de “Little gidding” vem ao nosso encontro nesta busca infinita e espiralada do repetir-se:

O que chamamos de princípio é quase sempre o fim

E alcançar um fim é alcançar um princípio.

Fim é o lugar de onde partimos.